Colóquio de Fès 2007 : As novas identidades
Ângela Jesuino-Ferretto – 01/06/2007
A se sustentar a hipótese de um Brasil moderno, politeísta e marcado pela antropofagia cultural, como pensar a questão da identidade? Mais precisamente, como pensar o Um numa cultura marcada com o selo do múltiplo? O que é que podemos aprender enquanto analistas com uma tal conjuntura?
Talvez seja preciso dizer imediatamente que o esforço aqui empreendido não consiste em pensar o Brasil com a psicanálise – fazer aquilo que chamam de psicanálise aplicada, o que não tem muito interesse – mas em pensar a psicanálise com o Brasil. É importante precisá-lo para tirar esta reflexão do âmbito do exotismo, caro a um certo pensamento, inclusive analítico, e também para tranqüilizar os colegas brasileiros quanto ao que poderia ser entendido como uma denúncia bobamente histérica de nossa cultura e de nossa subjetividade. Trata-se de se deixar interrogar e ensinar pela subjetividade singular estabelecida pelo laço social de uma determinada cultura. O que não fica muito longe de nosso trabalho cotidiano de analistas.
Tomadas essas precauções, será preciso que eu me explique um pouco sobre o meu título, o que já é, de certa forma, uma entrada no assunto.
De onde me vem isso, propor a identidade brasileira como sendo a vanguarda dessas ditas novas identidades?
Marcel Czermak e Charles Melman puderam expressar, em várias ocasiões, em seu ensino, a idéia de que a América Latina era nosso “futuro anterior”. Melman, em seu seminário de 16 de janeiro de 1997, já há mais de dez anos, dizia o seguinte: “Se há algo que se propõe a nós como futuro, é talvez o que existe hoje na América Latina”.
Se as novas identidades são o fruto da modernidade, o Brasil nasceu moderno. O que é que isso quer dizer? Graças à colonização, nascemos sob a marca da falência do discurso e já sob o império do objeto, portanto em plena modernidade. É por isso que estamos um pouco adiantados em relação a vocês. Nossa modernidade é uma modernidade de nascença, o que também pode vir inscrever diferenças entre nossa contemporaneidade e a de vocês.
Diferenças que também deverão ser realçadas se quisermos aprender alguma coisa com elas.
Se a relação privada com a identidade se apóia no coletivo, é preciso que eu continue a precisar o quadro no qual podemos nos interrogar. Em outras palavras, há traços de estrutura que é necessário valorizar se não quisermos ficar numa descrição fenomenológica. Descrição de resto necessária também, e à qual voltarei mais tarde.
Para falar do que a meu ver está ligado a esses fatos de estrutura, abordarei dois pontos:
- o questionamento do monoteísmo enquanto fundador de nossa cultura.
- e a antropofagia como nosso sintoma cultural.
Estes dois pontos implicam na mesma questão anunciada de saída: O que é feito do Um em nossa cultura? A partir daí, como pensar nossa relação com a identidade?
Comecemos pelo questionamento do monoteísmo.
Para isto, gostaria de me servir de uma série de artigos assinados com um pseudônimo, publicados num jornal do Rio, A Gazeta de Notícias – de janeiro a março de 1904 – retomados num livro intitulado As Religiões no Rio, recentemente publicado no Brasil.
“O Rio, como todas as cidades nestes tempos irreverentes, tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença diferente.
Lendo os jornais, as pessoas acham que estão num país essencialmente católico, onde alguns matemáticos são positivistas. No entanto, a cidade está cheia de religiões. Basta parar em qualquer esquina e perguntar. A diversidade dos cultos vai espantá-los.”
Eu me sirvo propositalmente desta citação, escrita no começo do século XX, para dizer que, se no Brasil nascemos modernos, é porque nascemos sob o signo do múltiplo. Não se trata de uma cultura fundada no Um do monoteísmo. Somos antes poli, politeístas na religião, mestiços na carne e sincréticos na imagem que fazemos de nós mesmos. Recentemente um escritor conhecido e cronista da vida política brasileira – João Ubaldo Ribeiro – propôs o significante poliarquia para dar conta da governabilidade de nosso país, ou melhor de sua ingovernabilidade. Importância, portanto, e perenidade desse significante em nossa cultura.
Afirmar que o Brasil é um país politeísta não é sem conseqüências. Minha hipótese é que, no país do carnaval, não soubemos fabricar Um com o que se apresentava na história como múltiplo. A partir do “em nome do pai, do filho e do espírito santo”, trazido pela colonização portuguesa e católica, fabricamos antes um “em nome dos pais, dos filhos e de todos os espíritos” da mestiçagem e do sincretismo. Levando a sério esta hipótese, é toda a questão da trindade e do Um, do três que faz Um, ou do três que é Um, que se acha pulverizada. Seria preciso então sustentar que nossa cultura não se funda no Um da conta, o que não é sem relação com o estabelecimento de Um impossível, de Um real.
Agora a via do sintoma que nos representa: a antropofagia.
Se a antropofagia carnal fez parte do começo de nossa história, a antropofagia cultural só vem à luz nos anos 20 graças ao movimento modernista brasileiro, cujo emblema é o manifesto Antropófago escrito por Oswald de Andrade.
Que nos diz ele?
Vou lhes trazer breves extratos:
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Tínhamos a justiça: codificação da vingança. A ciência: codificação da Magia.
Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em Totem.
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o.
É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas o caraíba não precisava. Porque tinha Coaraci (que em língua tupi quer dizer: a mãe do dia).”
Paro por aqui a leitura desse texto muito rico.
A que nos convida Oswald? A um banquete totêmico permanente e infinito, no qual, segundo seus conselhos, tratar-se-ia “de absorver sempre e diretamente o tabu”. Transformar o tabu em Totem é isso: engoli-lo, devorá-lo. É forçoso constatar que essa revolta filial condena o antropófago a uma inesgotável devoração do pai, na falta de poder identificar-se a ele. Evidentemente, a devoração promovida pelo manifesto não é da mesma ordem da incorporação, base de uma identificação primeira ao pai, de que Freud nos fala em Totem e Tabu.
O que é que nos ensina a antropofagia quanto à questão que nos interessa aqui?
Que a identificação primeira ao pai fica em suspenso. Ainda uma vez, eis-nos confrontados com a questão do que viria estabelecer o Um. Ch. Melman, aliás, fala da antropofagia como uma ambição de conseguir uma introjeção sem nenhuma conseqüência simbólica. Então, no que é que o ideal antropofágico viria anunciar as novas identidades? Promovendo que o bom está por toda parte e que portanto é preciso ser eclético. Isso também sinaliza nossa aptidão para acolher o outro, com a condição de negar qualquer alteridade, ou seja, com a condição de engoli-lo, digeri-lo. Eis-nos obrigados a retomar a questão do Um e do Outro para trabalhar a questão da identidade. Mas uma dificuldade nos espera: como pensar essa relação entre S1 e S2 numa tal conjuntura? Como pensá-la se o que vem assinalar nossa modernidade é também essa falta de solidariedade entre S1 e S2, o que por outro lado não deixa de invocar uma ação violenta para manter o laço social?
Com efeito, levantar a questão do politeísmo e da antropofagia nos obriga a repensar a questão do Um no Outro, ou se preferirem, a questão do pai no Brasil.
Somos um povo mestiço, ou em todo caso é nessa ficção que reconhecemos nossa identidade. Nossa mestiçagem se traduz no corpo, na identidade, na cozinha, na música, na religião. E nosso politeísmo já começa com o nome de família, pois se nossa identidade é mestiça, como sustentar um único pai? A mestiçagem pode reivindicar um único pai, ou lhe são precisos vários? Estaríamos no tipo de equação em que o múltiplo é que torna operativo o Um? Será que para fazer operar o Um temos necessidade de passar por essa ficção da mestiçagem, por essa montagem do sincretismo religioso?
Mas podemos também nos perguntar de onde nos viria um Nome do pai. De um pai em posição de mestre colonizador? Ou seja, de um pai que estivesse em posição de mestre real? Um mestre que não brincasse, que não estivesse ali para fazer semblant do que quer que seja, mas que, ao contrário, viesse encarnar a mestria no real? E no que, afinal, um mestre desse tipo pode efetivamente vir transmitir algo da ordem do Nome do pai?
Seria preciso pensar então que, se reivindicamos pais, é justamente porque reconhecemos, ou supomos, que não temos um pai. Deveríamos então constatar que um pai não há, e que nossa cultura não se funda no Um do sentido, do gozo fálico, que ela não se funda nesse ao menos Um que vem instaurar o campo do Outro com uma borda. É uma hipótese que nos ajuda a pensar, inclusive as conseqüências para um sujeito.
Isso nos permitiria apreender melhor a questão do gozo tal como ele se apresenta em nossas paragens? Inclusive a questão do gozo do corpo, tão pregnante na cultura brasileira?
É isso que encontramos na base de nosso politeísmo: nenhum lugar para pagar nossa dívida simbólica e, na dúvida, melhor se proteger, melhor acalmar a cólera dos deuses, melhor “beber a água de todos os rios” – como diria o célebre escritor brasileiro Guimarães Rosa – e então ser católico, de Umbanda, filho de santo, espírita, e mais se for o caso…?
É ainda por isso que o Outro pode nos aparecer como essa figura ameaçadora pronta a se manifestar de um modo persecutório? Nossa vulnerabilidade a todos os espíritos viria daí?
Nessas hipóteses, essa rápida tentativa de levantar questões e de tentar avaliar as conseqüências de um certo arranjo com a estrutura da linguagem, não há nenhuma moral, nenhum juízo de valor. Nenhum nacionalismo também. Nossa época é antes a do declínio do Nome do pai. Essa parece ser a marca de nossa modernidade e do imperialismo moderno que é o imperialismo do objeto. A questão que me coloco é a de saber se, justamente, as conseqüências seriam as mesmas se a referência paterna quebra a cara de saída, como parece ser nosso caso, pois já nascemos modernos, ou se ela quebra a cara mais tarde
Por outro lado, acho engraçado ver como hoje na Europa a mestiçagem ocupa um lugar de ideal. S.Gruzinski, em seu livro O pensamento mestiço, diz o seguinte, que ilustra bem uma certa atualidade intelectual: “nos espaços in between criados pela colonização aparecem e se desenvolvem novas formas de pensamento”. É engraçado pensar que nós tenhamos querido tanto ser como vocês e que hoje vocês pensem que a saída é ser como nós!
O que é difícil, tanto para nós quanto para vocês, é que, se o Um que é instaurado pelo monoteísmo não se sustenta mais na modernidade, teremos que nos virar com o múltiplo.
Minha aposta era, portanto, a de preparar com esse volteios, talvez um pouco longos e cansativos, porque repetitivos, o retrato que se segue:
Nossa identidade se mostra como sendo lábil, inacabada, antes blusa que se troca, fetiche[1] a ser renovado. Temos efetivamente a arte de não nos reduzirmos a algo da ordem do um, que é o princípio mesmo da identidade, do que vem fazer unidade. Nós nos empenhamos em desfazer qualquer possibilidade de uma identidade unívoca ou delimitada. Vocês percebem que a própria questão do traço unário se acha em dificuldade nessa conjuntura, em proveito da encenação do múltiplo. Eu acrescentarei: devido ao sincretismo. Essa identidade está sempre em construção, como as fantasias de carnaval, em confecção, na costureira, em ponto de prova, e para terminar efêmera.
Eu certamente reforçaria o retrato dizendo-lhes que o brasileiro moderno é um errante religioso, pouco seguro de sua identidade sexual, cujo corpo é entregue facilmente à cirurgia estética, e grande amador de fenômenos de multidão: futebol, carnaval, grandes encontros evangélicos ou carismáticos.
O que é que podemos extrair desse retrato a traços largos? Que testemunho clínico temos?
As conseqüências mais evidentes são as que concernem à identidade sexual: falar dos travestis e dos transexuais brasileiros tornou-se lugar comum. Mas além dessas figuras tão caricaturais, podemos nos perguntar se a própria sexuação escaparia ao que eu chamo de uma carnavalização da identidade. A clínica com pacientes brasileiros nos ensina com efeito que podemos mudar ou alternar o sexo do parceiro sem que isso provoque muito ruído, inclusive socialmente. Uma alternância do sexo do parceiro pode também seguir o curso das relações transferenciais estabelecidas com analistas de sexos diferentes.
Que dizer do corpo num país que se tornou o paraíso da cirurgia estética? Resiste ele, por sua vez, à busca identitária? Ou também se vê tocado, ou melhor, retocado, liftado, siliconizado, tratado como uma imagem sempre a aperfeiçoar? Que nos conta ele, senão que o real do corpo não faz obstáculo?
Os fenômenos de massa têm certamente, nesse contexto, uma função “identitária” particular: vir fazer Um todo, uma massa, ali onde não é possível se sustentar num traço. Isso talvez contrarie a psicologia das massas, mas o que é posto em destaque nessas manifestações é ainda assim um gozo do corpo partilhado, ou melhor, de um culto do corpo em seu gozo. Sou obrigada a ir rápido, mas posso retomar, na discussão, cada um desses pontos.
Poderíamos pensar que é essa identidade movente e múltipla que nos permite nos manter, lidar com esse real que não é da ordem do Um? Poderíamos pensar que, na falta do estabelecimento do Um no Outro, é assim que um sujeito pode ser levado a declinar sua identidade?
Não sou, evidentemente, a única psicanalista a pensar que somos um país politeísta. Um colega brasileiro propôs o seguinte: “no Brasil somos politeístas, Deus seja louvado!”[2] E acrescenta: “entre o panteísmo indígena, o politeísmo africano e o Deus único europeu, construiu-se um tecido simbólico que reconhece diferentes formas de enodamento. Nós que funcionam como etapas alternativas de deciframento, o que permite a coexistência de significações diversas e simultâneas, sem que nenhuma dessas significações venha eliminar o valor de verdade da outra. O sujeito está então ao abrigo da obrigação de ser um e um único. O brasileiro segue então a consigna da modernidade, que o convoca a ser polissêmico e ao mesmo tempo universal, mas ele recusa obedecer à consigna do individualismo…”
Não sei se uma tal interpretação do nó é pensável, mas é preciso constatar que nosso colega brasileiro descreve bem o que é um sujeito sem ponto fixo, descreve bem a errância na qual se encontra o sujeito moderno e que é própria das novas identidades. Essa ausência de ponto fixo se traduz em nós numa busca de sentido sempre a renovar. Podemos dizer isso ainda de outro modo: o sujeito vem se “colar” a todos os S1 que passam, sem que esse significante possa vir se referir a um S2, sem que esse significante possa vir em definitivo representar o sujeito no campo do Outro, deixando-o numa inquietude certa. Esse tipo de destino identitário pode facilmente se deduzir da escrita proposta por Ch. Melman para dar conta do fato colonial, o que vem nos reforçar na idéia de uma modernidade de nascença.
Em todo caso, se as novas identidades se caracterizam por essa ausência de ponto fixo, como Ch. Melman nos indica em O homem sem gravidade, podemos com efeito considerar que a identidade, tal como ela se declina no Brasil, está na vanguarda.
Vou concluir citando Hermann Melville: “Colombo terminou o romance da terra, não resta nenhum novo mundo para a humanidade”, ou seja, o futuro já está aí.
___________________________________________________________________________________
Para ler o texto original, em francês:
http://www.freud-lacan.com/fr/44-categories-fr/site/1190-Les_nouvelles_identites_une_avant_garde_bresilienne_Colloque_de_Fes_2007
Tradução: Sergio Rezende
[1] Melman, Ch. “… o que chamamos de nossa identidade é um fetiche…” em “Lacan que j’ai beaucoup aimé mais que je n’ai pas mangé”, conferência feita no CEF de Recife, Olinda, Brasil, 1992
[2] Jerusalinsky, A. “Cuidado com as orelhas!” em Psicanálise e colonização, Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1999.